Tuesday, 23.01.2018

#2 Chiaroscuro: a (re)configuração da forma nos intervalos da luz

Design, Tecnologia e Política


Introdução

A introdução da reprodução da imagem, pela fotografia e mais tarde pelo cinema, veio alterar os modos de transmissão e comunicação de informação. Os media, passaram a ter um papel cada vez mais presente e de forma cada vez mais invasiva na vida dos indivíduos. Da esfera pública à privada, a ubiquidade de que foram dotados por meio da inovação e progresso tecnológicos revelou- se essencial para as transformações económicas e sociais que se fizeram e fazem sentir. As possibilidades de proximidade que a tecnologia e a Internet carregavam consigo depressa adoptaram uma dupla face, passando a promover um paradoxal distanciamento entre os membros da sociedade moderna. A desconexão que a era digital veio introduzir começou por redefinir comportamentos individuais e, consequentemente, a desenhar novas formas de interacção social que reformularam a estrutura e a organização social e económica. Neste ensaio procura-se analisar o impacto destas alterações na percepção que o indivíduo tem do tempo e do espaço e, reflexivamente, na sua concepção de si mesmo, atribuindo um peso especial às dinâmicas entre luz e tempo e à sua afectação da agência humana na era digital da sociedade moderna.
The pursuit of forms is only a pursuit of time, but if there are no stable forms, there are no forms at all.
Paul Virilio, The Aesthetics of Disappearance


1. A sociedade do espectáculo
A sociedade pós-industrializada em que vivemos trouxe consigo o paradigma de uma nova organização económica, onde a manufactura perdeu relevância para as tecnologias de informação que, com o advento da Internet, começaram a construir os contornos definidos de uma economia da informação, onde a imagem se desenha como rainha absoluta perante os seus expectantes espectadores. A reprodução da imagem — em particular a prática fotográfica e mais tarde o cinema —foi fundamental nesta alteração dos meios de produção, oferecendo à obra de arte uma possibilidade de registo e reprodução que lhe retirou a sua originalidade, desvalorizando-a (Benjamin, 1935: 4). É destes fundamentos, no entanto, que se constrói a sociedade do espectáculo que Guy Debord enfatiza na descrição da sociedade moderna, dormente e alienada no tempo e no espaço. Alienada tanto no momento da produção como no momento do consumo, esta sociedade alimenta-se da reprodução e (re)visualização da imagem, constituindo assim o espectáculo como mercadoria e o espectador como consumidor. A ocupação total da vida social pela mercadoria, introduz-nos a uma segunda revolução industrial — conceito introduzido por Gunther Anders em 1956 na Obsolescência do Homem —, onde o consumo alienado se torna para as massas um dever suplementar à produção alienada (Debord, 2012: 26). Nesta sociedade que Debord tão avidamente descreve se percebe a influência das ideias marxistas que colocam a nu a relação próxima entre o espectáculo e o capital. De facto, Debord afirma claramente que o espectáculo é o capital a um tal grau de acumulação que se torna imagem (Debord, 2012: 19); uma imagem que passa a ser objecto de consumo por todos aqueles que dela se hipnotizam. Desta forma, torna-se relevante perceber, não apenas a alteração que os modos de produção sofreram mas, essencialmente, as consequências sociais que daí advieram e como são capazes de influenciar, não só o presente, mas sobretudo o futuro comum. Esta segunda revolução industrial caracteriza-se pelo ritmo alucinante que a era digital atribui a qualquer mudança que se registe, tornando imperativo aos indivíduos uma adaptação constante, cada vez mais rápida, cada vez mais inconsequente. É desta rapidez que se constitui em parte o consumo da sociedade do espectáculo, destituído de tempo de reflexão e de um espaço vazio de ruído. O que outrora representava o tempo de apreciação pela obra de arte, veio ser substituído por um desenfreado e desconcertado olhar de confirmação — raras vezes de percepção que, por não permitir uma relação do indivíduo consigo mesmo, dada a apropriação da mercadoria de todos os momentos da vida social — e privada, resulta num consumo impulsivo de qualquer tipo de informação, em qualquer momento e em qualquer lugar. Este comportamento e posicionamento social que adquire, pela democratização da tecnologia, estende-se genericamente à classe média e coloca o indivíduo numa relação de unidade com os seus pares. Apesar da capacidade de aproximar individualidades, a tecnologia concretiza, paradoxalmente, a sua desintegração. A unidade que Gilles Deleuze e Felix Guattari referem, numa lógica de super-unidade através da multiplicidade, onde já nem sequer importa se alguém diz eu (Deleuze, Guattari, 2003: 407), encontra na sociedade do espectáculo a hiperbolização conformada da passividade. A massa uniforme de indivíduos que trabalham incansavelmente para a abundância espectacular subtrai-os à sua totalidade, representando sempre n-1, the only way the one belongs to the multiple: always subtracted (Deleuze & Guattari, 1980: 409), porquanto se possa verificar a presença de uma figura capaz de relembrar aquela nietzschiana do Übermensch. Na sociedade do espectáculo, o indivíduo anula-se e com ele qualquer capacidade de interacção que a tecnologia seja capaz de oferecer, no sentido de promover o diálogo e a concertação social. Estes ficam invalidados e admite-se a banalidade e o trivial, que ocupam o tempo dos seus receptores que, de forma reflexiva e impulsiva, os buscam numa perspectiva de escape e conforto. No fundo, uma busca da felicidade e fuga dos problemas reais, que não encontra senão estímulos tão viciantes quanto vazios que se acumulam na esperança de um desespero cego pela melhoria das condições actuais.

2. A sociedade líquida: movimento e leveza
A velocidade, que caracteriza esta continuidade circular, é outra das características principais da sociedade moderna, ritmada ao passo da tecnologia digital e alavancada pela contínua produção de informação. A rapidez com que aquela se transforma é ancorada, por Zygmunt Bauman, na sua Liquid Modernity, à analogia com os líquidos que, sem uma forma definida, representam a sua passagem abrupta e extinguível, sempre em busca de uma alteração do status quo. Fluids do not keep to any shape for long and are constantly ready (and prone) to change it (Bauman, 2000: 2). Na sociedade líquida, a mudança afirma-se como o status quo, procurando-se sempre atingir o melhoramento em relação ao estado anterior. Uma busca em tom ansioso e apressado, que pressupõe uma leveza desmaterializada e um constante movimento nervoso. Desta perspectiva pouco importa o conceito de espaço, pela superficialidade que se lhe atribui, consequência da passagem contínua de um estado para o próximo — aqui, é o conceito de tempo que importa reconhecer, pela inevitabilidade histórica atribuída à mudança (Crary, 2013: 38) e o movimento que despoleta. Este movimento, em compasso de corrida acelerada, reflecte as preocupações da sociedade moderna na sua liquidez, contemplando com ansiedade o próximo nível de melhoramento, preterindo a durabilidade em função da obsolescência e instantaneidade. Only the sky (or, as it transpired later, the speed of light) was now the limit, and modernity was one continuous, unstoppable and fast accelerating effort to reach it. (Bauman, 2000: 9). É inerente a esta ideia uma preocupação e constante perturbação que vem pôr em causa a estabilidade social, pela perene incompletude com que se deparam as identidades que fazem parte desta esfera. Não apenas existe uma peregrinação permanente de encontro à perfeição, como tendencialmente se renova a necessidade de uma edição em massa das identidades para sempre insatisfeitas. A presença passa a projecção, extraindo do real as identidades outrora estáticas agora dinamicamente editáveis, numa lógica de contínuo desequilíbrio entre vida pública e privada, entre consciência e desumanidade. Na sequência da sociedade do espectáculo, a busca pela perfeição representa desta forma a inconclusão da individualidade, expondo pedaços avulsos de uma história entrecortada, destituída de propósito, vivida a espaços entre o real e o virtual. A repetição recorrente e esmagadora de informação que constitui a sociedade pós-industrial funciona como entrave ao discernimento particular, colocando em causa a agência e qualquer conceito de propósito e intenção. O estado amorfo que este encadeamento de eventos proporciona dota os indivíduos de uma condição de alienação onde o peso da responsabilidade reflecte a leveza das acções inconsequentes que o definem. Assim, importa perceber de que modo a desmaterialização e inconsistência desta sociedade redefinem o papel do indivíduo em si mesmo e como deve ser encarada a sua actuação. Milan Kundera, na Insustentável Leveza do Ser, aborda precisamente a trágica ambiguidade da humanidade, onde a morte e a finitude do ser representam a inexistência de retorno e poderão justificar acções imponderadas, destituídas de base térrea; por oposição à noção de responsabilidade inerente à continuidade da vida — o fardo mais pesado, este do eterno retorno — e à consequente afectação social que daí advém. Se, quanto mais pesado for o fardo, mais próxima da terra se encontra a nossa vida e mais real e verdadeira ela é (Kundera, 2005: 13) então, da sociedade líquida que reconhecemos como epíteto da leveza podemos esperar apenas um distanciamento da realidade, pela insignificância de que se revestem os movimentos de quem dela faz parte, afastados do real, onde tudo é permitido. O distanciamento contínuo da realidade na sociedade moderna tende a alterar a sua percepção pelo indivíduo, que deixa de sentir o peso da consequência nas suas escolhas. No entanto, da perspectiva rizomática da multiplicidade, característica da modernidade tecnológica, que se encontra em Deleuze e Guattari, percebe-se a noção de um eterno retorno ou antes de uma continuidade indelével, apesar da velocidade e quase instantaneidade que a constitui. A leveza encontra a necessidade do peso numa semi-realidade indefinida e de contornos esbatidos, onde a agência humana e em última instância o conceito de humanidade ficam comprometidos, numa reformulação etérea da percepção do real. Existe, na modernidade, uma inconsequência inerente à acção humana que lhe retira a proximidade e a consciência de si mesma, enclausurada numa força cinética que a mantém refém da sua sonolência antecipada.

3. A percepção da realidade: tempo e luz em Virilio
Em Paul Virilio, a velocidade apresenta-se como um conceito-chave que determina o posicionamento do indivíduo no mundo e a sua percepção da realidade. Esta sonolência a que está associada remete para um estado anestésico e apático, que transporta os indivíduos entre realidades paralelas, entre o sono e o estado acordado, afectando a sua percepção do real. Fragmentado e dependente de uma reconstrução a posteriori, o real torna-se visível apenas à luz da intermitência do sono. A estas intermitências fortuitas e fugazes, a que Virilio se refere como picnolepsia, se deve o mapeamento da memória — a sua montagem — que se apresenta sempre mais fragilizada e menos consciente, confirmando a desintegração do tempo e do espaço, onde passa a existir apenas luz. No entanto, a presença de luz, ou a existência destes momentos picnolépticos, sempre mais curtos, e o prolongamento do black out cria no indivíduo a modificação do efeito de realidade — de que Méliès se apropria no cinema, na metamorfose de homem para mulher — conduzindo-o à incerteza e à incredulidade face ao que se torna visível, pela crescente predominância de uma existência confinada ao espaço virtual. A luz entrecortada que aqui se antevê e a mobilidade que lhe é inerente irá reposicionar o sujeito perante a sua realidade, oferecendo-lhe uma nova perspectiva sobre aquilo que já existia mas que, de alguma forma, não estava preparado para tomar como sua. The mobility of the synoptic trajectory, in modifying the subject’s point-of-view, is going to allow him the discovery of what, somehow, was already visible. (Virilio, 1991: 108) Já em Platão, na sua Alegoria da Caverna, se percebia a necessidade de uma adaptação à nova realidade invisível — forcing them to face the light-giving source... to contemplate the real which is the invisible (p. 26). A velocidade que em Virilio se descreve, principalmente nos intervalos entre o real e o virtual, carece dessa adaptação e, no geral, também a sociedade moderna da era digital. A abstracção que a velocidade da luz — speed of light — nos traz compromete e suprime as dimensões do tempo e do espaço, reiterando a existência do Real Time, a quarta dimensão presente em Virilio, cuja presença adquire um carácter ubíquo, diluída na luz. A percepção oscila aqui entre aquilo que é tornado visível — a forma; e o que, por falta de consciência, assume um carácter amorfo e irregular. Para que se torne visível, ainda que por breves instantes, é necessária a aplicação de um esforço extra, capaz de interromper a alienação deste profundo sono paradoxal — REM, com fases de rapid waking. A picnolepsia, enquanto fenómeno massificado, dentro do contexto moderno da sociedade do espectáculo e da economia da informação que a reitera, transporta o espectador de volta à realidade, oferecendo-lhe pedaços do mundo que chegou a conhecer. Este mundo sem memória e de dimensões instáveis (p.16) encontra no espectáculo a sua concretização, pela repetição da informação que transmite e que banaliza. Aqui se afirma a exponenciação máxima do sono, que entorpece e dissimula o real a que já ninguém pertence. É a transformação do espectador em si mesmo que redefine a sua percepção da realidade e esteriliza a memória que tem do mundo, envolvendo-o de uma aura de ilusão que dificulta qualquer retorno ao mundo terreno. Assim, na Estética do Desaparecimento, a velocidade com que o progresso se define e autoproclama é a sua raison d’être, o fundamento da sua possibilidade. A invisibilidade representa então o desaparecimento daquilo que, apesar de existir, deixa de ser visto, pela existência paralela noutra realidade, inibindo o distanciamento daquilo que se efectiva como verdade. A ideia de exposição em Virilio, onde o cinema e a fotografia são referidos com grande destaque pela sua relação com a imagem e a percepção que vieram alterar do mundo, é também a ideia por detrás da noção de iluminação, de tornar visível e expôr, numa perseguição da luz que se apresenta como um esforço considerável para juntar os fragmentos do que se consegue antever. Do sujeito se espera este esforço para que consiga fugir à apatia que o consome e desconfigura, para que se consiga libertar do espectáculo entorpecido e sonolento que sobre ele se abateu. Aqui, o sono pode ser entendido, pela sua dissimulada recriação, como a condição necessária para a continuidade de um poder invisível capaz de manter as massas submetidas aos seus desejos (Crary, 2013: 38), funcionando como metáfora de uma sociedade zombie que construímos e curamos, por um lado; ou, por outro, como o momento regenerador que estabelece a ocasião de pausa na continuidade do espectáculo, estabelecendo-se como um momento livre dos estímulos da sociedade da informação. Na sociedade moderna, o sono está associado à capacidade de ver e observar ou, se quisermos, de consumir aquilo que lhe é apresentado numa corrente repetitiva, própria da sociedade do espectáculo. Importa distinguir o sono da dormência, em que o primeiro se apresenta como parte da condição humana, necessária à regeneração e preservação de capacidades de discernimento; e o segundo como consequência do estado entorpecido a que os indivíduos chegam pela contínua e repetitiva sobrecarga de estímulos de informação que já conhecem. A insónia generalizada que o capitalismo inerente à sociedade pós-industrial ambiciona, procura privar os indivíduos desta última capacidade de distanciamento. O tempo de sono converte-se num interlúdio inútil, por oposição ao tempo de consumo, que se estende à maioria das necessidades da vida humana, 24/7. Como refere Crary, aquele apresenta-se como uma incógnita frustrante, do qual ainda não se reconhece o valor para as exigências do capitalismo moderno — The stunning, inconceivable reality is that nothing of value can be extracted from it (Crary, 2013: 16).

4. Economia da Atenção
World is an illusion and art is the presentation of the illusion of the world.
Paul Virilio, The Aesthetics of Disappearance


A sociedade moderna encontra na economia da atenção os artifícios capazes de competir pelo tempo de cada indivíduo, que representa a moeda de troca da era digital. A economia da atenção que a sociedade de informação criou, apresenta-se revestida de um brilho néon, iluminada 24/7 em busca da maior quantidade possível de eyeballs que possa converter em lucro. Aqui, é o tempo passado no ecrã que legitima a continuidade desta economia e que a impulsiona para níveis elegantemente redesenhados, onde a percepção do indivíduo se reduz a reflexos e impulsos biológicos, muitas vezes imperceptíveis mas, agressivamente viciantes, sempre mais difíceis de combater. A era da tecnologia digital, cujo potencial para criar indivíduos plenos e capazes de exercer as suas capacidades ampliadas se constitui em negação, reconhece e concretiza o paradoxo da velocidade. Uma velocidade crescente que se movimenta em loop, aprisionando os seus membros em si mesmos. A absorção do sujeito pela sociedade e o estabelecimento da sua existência através dos media, celebra o poder invisível desta sociedade moderna, onde a ausência de reflexão preconiza a zombie nation, que caminha de olhos opacos para a onde a estrada indica. Esta anestesia é hiperbolizada pelas regras da economia moderna do Ocidente, onde a funcionalidade representa a sua imediata obsolescência — “if it’s working, it’s already obsolete!” (Virilio, 1991: 93). Nela se pretende manter a qualquer custo a atenção do indivíduo, transformada em consumo vazio de informação repetida, numa inerte e distópica relação de ansiedade controlada pela satisfação imediata de impulsos banalizados. O black out necessário à anulação do sujeito e da sua realidade é constantemente promovido, nesta adoração do nada que a modernidade difunde, onde a intangibilidade do invisível se formula como uma crença epistemológica. A invisibilidade do poder na economia da atenção garante-lhe a redução da vontade dos indivíduos a zero, diminuindo-os à condição de autómatos sem autonomia e sem consciência — somehow the vision of light moving on a screen would have replaced all personal movement (Virilio, 1991: 104). A erosão da agência que aqui se percebe é ponto de partida para a desumanização do sujeito que, ao deixar-se elevar ao nível do virtual, perde a capacidade de se reconhecer enquanto consciência decisória. A sociedade moderna pavimentou o seu caminho para um estado de anestesia em que o invisível determina as acções moribundas que irão afectar o caminho dos demais, já que aquilo que se vê pressupõe uma dança constante na hipótese surreal do mundo insensível.

5. Chiaroscuro, a (re)configuração da forma nos intervalos da luz
Chiaroscuro, a técnica que, na pintura, se define pelo contraste entre luz e sombra na representação de um objecto, faz com que se tornem visíveis no escuro, as formas do que nela estava escondido. A luz — ou antes os seus intervalos, que em Virilio se define como a presença ou transporte para o real, encontra aqui uma analogia (a espaços) adequada. A sociedade moderna é pintada deste contraste entre visível e invisível, entre luz e sombra, que a constituem e definem a actuação daqueles que dela fazem parte. As formas que ilumina completarão o seu significado e a sua intenção na percepção que o sujeito delas faz. E dele se desprende a sombra ontológica que o preclude em si mesmo, sem demoras ou hesitações. Esta dialética traz tanto de poético como de trágico à interpretação destas dinâmicas. Os intervalos da luz, na sua subitaneidade, concedem um balanço inesperado na revelação e reconfiguração das formas escondidas do real, constituindo uma novidade que apenas alguns serão capazes de interpretar. À semelhança de um memento, a reconstrução do mundo pela luz e pela sombra exige uma presença atenta e preparada, capaz de discernir entre as suas sinuosidades veleidosas, antecipando- se a substituição da cegueira pre-existente pelo foco no nada que constitui os objectos. No entanto, a perseguição destas formas instáveis instala-se como paradoxo e passa a uma exclusiva perseguição do tempo em si mesmo ou, se quisermos, da luz — if there are no stable forms, there are no forms at all (Virilio, 1991: 14). O propósito da reconstrução da realidade afirma-se como uma peregrinação pelos caminhos de uma fé prescrita que, na sociedade moderna mobiliza os seus membros continuamente, procurando manter as condições necessárias à difusão dessa mesma modernidade. A desintegração social que é aqui paralelamente promovida, por se antecipar o desaparecimento, é comprometida pelo equilíbrio na contemplação das novas formas que surgem à luz do que não se vê. Pelas palavras de Bauman, social disintegration is as much a condition as it is the outcome of the new technique of power using disengagement and the art of escape as its major tools (Bauman, 2000: 18). A reconciliação entre a anestesia e a ignorância do que existe na invisibilidade, no desaparecimento, transporta-nos para um meio onde o esquecimento se impõe e se celebra a subtracção à vida terrena, aos problemas tangíveis e à vida real na sua fatalidade. Uma zona de transe onde o espaço e o tempo se desintegram, assim como qualquer perspectiva de forma, para se observar uma continuidade dormente, cujo alívio momentâneo faz implodir a consciência para se encontrar de novo num estado alienado. A sociedade do espectáculo e, no fundo, toda a modernidade da era digital, vive sob este preceito, na procura do seu paternalismo intrínseco, que a permita afastar-se do peso da responsabilidade consciente, e agir com a leveza da inconsequência. Mas quanta desta inconsciência é de facto induzida e quanta dela é a escolha desesperada de quem se quer sentir mais leve e, paradoxalmente, mais feliz?

6. Velocidade e Fuga, the unbearable lightness of being
The fatal catastrophe seems to passengers of the giant vehicle like a senseless, unreal hypothesis, and while the ship sinks they continue to dance to the sound of the orchestra.
Paul Virilio, The Aesthetics of Disappearance


Existe na fuga da realidade uma esperança de pausa, uma utopia benevolente. Existe na fuga a antevisão da paz de espírito a ritmo lento, com a cadência de sensações amorfas, transportadora do indivíduo para um estado anestésico onde o peso da responsabilidade se dissolve com o diminuir da sua autonomia. Esta sensação de deslocamento do tempo e do espaço, de uma subtracção à vida terrestre ou se quisermos, à realidade; (ou antes) o anseio por esta não-sensação é característica da sociedade pós- industrial que nos envolve e consome — porquanto o indivíduo é sem si mesmo produto e consumidor na lógica circular da sociedade do espéctaculo. A velocidade sobre a qual se define é ainda aquela que o impulsiona ao encontro desta fuga. O ritmo acelerado da sociedade moderna atribui-lhe a sua inércia característica e desenha os contornos deste sonambulismo ansiado, figurativo da escolha etérea da não-participação. Ao optar por um caminho de efemeridade, em busca de uma leveza capaz de proporcionar um escape imediato a sensações demasiado reais, o indivíduo anula o valor da sua humanidade, tornando os seus actos insignificantes. A fuga torna-se insuportável quando o peso da acção humana é reduzido ao nada, despido de propósito, alienado de tudo. Assim, a procura por velocidades extremas, sugerida por Virilio, é uma tentativa de romper a inércia do movimento contínuo e do cansaço da repetição. É uma busca desesperada e concertada, capaz de pôr a descoberto novas sensações, ainda que perigosas. A busca do acidente como quebra do ritmo alienado na redefinição de si mesmo — What is bought with the speed machine is no longer the chance of the voyage but the surprise of the accident (...) (Virilio, 1991: 95). Num mundo em que death itself can no longer be felt as mortal; it becomes, (...), a simple technical accident (Virilio, 1991: 60), o anseio da atrocidade representa não já a pausa que a fuga garante, mas o romper da corrente estabelecida, através desta surpresa, que se procura incessantemente. Em Crash, James Ballard executa a ideia da procura conspícua do acidente de viação como refugo de energia, capaz de roubar o indivíduo ao seu próprio tempo, à sua alienação dilacerante. O peso da leveza que é a vida normal sucumbe perante a gravidade do embate, que renova a presença de sensações, representadas pelas cicatrizes que as personagens trazem pelo corpo, como uma orgulhosa adição, mera montra de troféus que se amalgamaram na busca incansável e incorruptível pela imortalidade através da visibilidade, através de uma morte celebrada pela imagem e pelo desafio das normas. A combustão que a aceleração experienciada provoca coloca em paralelo a prática sexual e a morte — ou o desejo dela —, enquanto momentos metafísicos de uma psicopatologia benevolente. “The car crash is a fertilizing rather than a destructive event, a liberation of sexual energy” (Ballard, 1996). Da conclusão do acidente resulta uma oportunidade de fuga cuja intensidade momentânea contrasta com a quietude da alienação, fruto da repetição. A procura do acidente encontra reflexo também na constituição da perseguição da luz — chasing light —, os momentos de rapid awakening que Virilio aborda, mostrando mais uma vez a necessidade de embater com o real para se conseguir retornar a ele, em plena consciência, ainda que por breves instantes. A leveza das acções que sociedade moderna preconiza, desintegra o indivíduo enquanto ser social e as acções que antecipam o acidente identificam-se, na liquidez deste meio, como portadoras de sensações a um mundo desprovido de sólidos. A fuga da sociedade moderna representa assim a tentativa do sujeito controlar a velocidade da sua consciência; uma fuga de si mesmo e do meio que o define através de uma ruptura abrupta e imprevisível, para que se volte a encontrar na efemeridade apocalíptica de um momento, numa sociedade que se debate com a insustentável leveza do ser.

We can no longer bear anything that lasts.
Paul Valéry



Conclusão

A alteração de paradigma na estrutura económica da sociedade moderna, que nos coloca no centro de uma economia da informação, reorganiza não só o método de produção, mas a forma como nos relacionamos com os outros e connosco mesmos. A era digital, que torna possível esta economia da informação, é também a condição para a sua expansão exacerbada, e reflecte a sua rapidez inerente. A velocidade, característica da modernidade líquida, resulta num estado de apatia e dormência pela repetição que produz, originando um prolongado black out, que afecta as capacidades de discernimento e assimilação do indivíduo. A realidade apresenta-se assim como um estado amorfo, onde o tempo e o espaço são suprimidos em função de uma quarta dimensão, onde a velocidade da luz opera. A percepção do tempo e do espaço pelo indivíduo ficam assim afectados e, consequentemente, o modo como interpretam a realidade, a que acedem apenas nos intervalos da luz — picnolepsia, interrompendo rapidamente e por breves instantes o paradoxical sleep em que se encontram. As fases de rapid awakening que lhe são proporcionadas admitem a montagem da sua realidade intermitente, tanto mais disforme e irreconhecível quanto é o tempo passado em black out. A capacidade de se retirar deste estado sonâmbulo pressupõe um esforço que põe em evidência a agência humana e a sua capacidade de carregar o peso da responsabilidade de assumir a continuidade da existência e a consequência das suas escolhas, por oposição à existência num mundo onde as acções replicam a leveza da inconsequência, pela negação do eterno retorno. Na sociedade moderna celebra-se o paradoxo do Ocidente, que considera o sono um obstáculo à concretização das possibilidades humanas e das suas totais capacidades. Numa sociedade acordada 24/7, a velocidade que a define é também aquela que a torna um fantasma de si mesma. Movida a ambição e orientada a resultados, a modernidade ocidental fomenta um sonambulismo patológico, onde a fuga do vazio se admite como a única possível escapatória, numa procura de algo mais próximo ao que uma vez se apresentou como o real, actualmente desconhecido, superando a insatisfação e a modorra dos seus dias de repetição vazia. Assim, o mundo apresenta-se pintado de luz e sombra, onde o que está a descoberto se define pela posição do sujeito intérprete, que vê sempre reconfigurado o real que se lhe apresenta, sempre em aceleração. É-lhe negado o tempo da consciência e do tempo de si mesmo numa viagem onde a vontade e a agência se entrelaçam com o peso e a leveza das escolhas da humanidade. - Godspeed.





Referências


BAUMAN, Zygmunt (2000), “Liquid Modernity”. Cambridge: Polity Press.

BENJAMIN, Walter (1935), “The Work of Art in the Age of Mechanical Reproduction”.

CRARY, Jonathan (2013), “24/7 - Late Capitalism and the Ends of Sleep”. London: Verso.

CRONENBERG, David (Producer), (1996) “Crash” [Motion Picture]. United States: The Movie Network.

DEBORD, Guy (2012), “A Sociedade do Espectáculo”. Lisboa: Antígona.

DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Felix (2003), “Introduction: From a Thousand Plateaus”, in “theNEWMEDIAREADER”. Cambridge and London: The MIT Press, p. 405-409.

KUNDERA, Milan (2005), “A Insustentável Leveza do Ser” (27a ed.). Lisboa: Dom Quixote.

VIRILIO, Paul (1991), “The Aesthetics of Disappearance”. Paris: Éditions Balland.